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“Temo voltar a deixar de jogar golfe em 2017”
07/08/2016 18:02 RODRIGO CORDOEIRO
tags: Joel Neto
Joel Neto a 24 de Maio na apresentação do novo livro em Lisboa / © RODRIGO CORDOEIRO

Escritor e colunista Joel Neto a propósito do seu mais recente livro – “A Vida no Campo”

Esta é a segunda entrevista de Joel Neto no GolfTattoo e, como a primeira, surge na sequência do lançamento de um livro seu. O ano passado tinha sido o romance “Arquipélago”, a sua obra de maior envergadura, alvo de amplo louvor crítico, em Junho deste ano foi o diário “A Vida no Campo”, feito a partir do lugar dos Dois Caminhos, freguesia da Terra Chã, na ilha Terceira, onde nasceu em 1974 e aonde regressou em 2012 depois de muitos anos em Lisboa, e que tem o mesmo nome da coluna que assina no Diário de Notícias. 

Rodeado de uma paisagem estonteante, das memórias da infância e de uma panóplia de vizinhos de modos simples e vocação filosófica, o escritor açoriano descobriu que a vida pode, afinal, ser melhor. Muito melhor. 

“A Vida no Campo” traz-nos gentes, saberes e sabores ancestrais. Traz-nos a amizade, o amor e a perda também. Traz-nos cães – traz-nos vários cães, como nos traz outros animais. Traz-nos hortas domésticas e flores. Piqueniques, caminhadas a perder de vista e barcos navegando no horizonte. Crepúsculos românticos e dias de frio à lareira. 

Depois do sucesso de Arquipélago, Joel Neto torna a provar que num pequeno lugar no meio do oceano pode, afinal, caber o mundo inteiro.

Sendo um dos mais ilustres golfistas portugueses, o escritor conta aqui que esteve cinco anos sem jogar torneios e pelo menos uns três sem handicap: “Jogava uma ou duas vezes por mês, e sempre mal.” Mas que voltou a fazê-lo com mais regularidade no final de 2015 e que no final de Março teve o seu maior momento de glória, quando foi vice-campeão gross de O Melhor dos Melhores, o torneio mais emblemático da Terceira, ilha que tem uma grande tradição no golfe e excelentes jogadores. 

De referir que a presente entrevista foi publicada originalmente no suplemento “Golfe” do Público de 25 de Junho, porém está na íntegra e não cortada, como sucedeu por imperativos de espaço na versão do jornal.

O livro exposto na FNAC do Chiado / © RODRIGO CORDOEIRO 

GolfTattoo – “A Vida no Campo”… Podia ser também o título de um livro sobre golfe… 

Sim, podia. Mas cada jogo de golfe contém em si próprio várias vidas. Somos múltiplos quando jogamos golfe. Exultamos com os mais pequenos feitos e ruímos emocionalmente com os mais inconsequentes fracassos. Digamos que jogar golfe é uma espécie de exacerbação da vida. Uma metáfora hiperbolizada. 

Como tem sido receptividade ao mesmo nestas primeiras semanas, comparativamente com o teu anterior livro, o romance “Arquipélago”? 

O “Arquipélago”abriu uma série de portas que “A Vida no Campo”me permitiu efectivamente atravessar. De um certo ponto de vista, a minha maturidade literária – e isto sou eu a fazer de crítico literário de mim próprio, desde logo uma contradição de termos – começa com “Arquipélago”, que obteve excelentes resultados tanto do ponto de vista crítico como comercial. “A Vida no Campo” tem vindo a acentuar esses resultados, o que significa – espero – que é o livro certo no momento certo. 

É o teu 11.º livro, mas não é o primeiro de crónicas… 

Nunca considerei o livro “A Vida no Campo”como um livro de crónicas nem nunca considerei a rubrica “A Vida no Campo”, do Diário de Notícias, como crónicas. Nós é que passámos a chamar crónica a tudo o que é matéria não informativa publicada nos jornais. Mas os jornais, na sua génese, eram espaços de literatura também: de ficção, de poesia, de diário. Alguma da melhor literatura dos séculos XIX e XX veio dos jornais e foi publicada originalmente como folhetim. Para mim, “A Vida no Campo” foi sempre um diário – a coluna, como agora o livro. 

Quando começaste a escrever no DN as crónicas que integram o livro pensaste desde o início que poderiam dar um livro? 

Na verdade, aqueles textos – que não crónicas, repito – já eram um livro antes de serem textos de jornal. O diário estava a ser escrito desde o meu regresso às ilhas, em 2012. O que aconteceu, com a passagem a coluna de jornal, foi uma reconfiguração do fulgor dos textos em favor de uma coerência gráfica e formal. Daí até ao livro houve ainda um trabalho de re-sequenciação dos textos, de modo a oferecer-lhes uma linha narrativa contínua que lhes permitisse serem lidos como um diário ou mesmo um romance, se o leitor quisesse ou não pudesse evitá-lo. Mas nenhum artifício põe em causa a integridade original dos textos. 

Como é que lidas com a pressão de ter de escrevê-las diariamente? Não só as de “A Vida no Campo”, mas também a crónica desportiva no jornal “O Jogo”…? 

Às vezes bem e às vezes mal. A crónica desportiva d’O Jogo é um pouco menos angustiante porque tem a actualidade como suporte. A muleta da actualidade – desportiva ou de outra natureza – resolve alguns problemas que se tornaram muito mais difíceis de resolver quando se tratava apenas de usar o quotidiano e a memória, e de fazer disso literatura em vez de análise. De qualquer modo, sou disciplinado, e é isso que me salva. 

Sei que “Arquipélago”, lançado o ano passado, te exigiu muita dedicação e tempo, e que enquanto o escreveste jogaste pouco golfe.

Um pouco mais. Estive cinco anos sem jogar torneios e pelo menos uns três sem handicap. Jogava uma ou duas vezes por mês, e sempre mal. Voltei a jogar com um pouco mais de regularidade no final de 2015, concluída a fase de promoção de Arquipélago. Demorei bastante até conseguir voltar a bater na bola, mas o simples facto de não estar ao computador era-me agradável. Até que me inscrevi no torneio mais emblemático do CG Ilha Terceira, chamado O Melhor dos Melhores, e para minha infinita surpresa – minha e de toda a gente – acabei vice-campeão. 

Fala-me mais de como se desenrolou essa prova? 

Eu não estava bem no jogo comprido em geral, mas ia conseguindo pôr as bolas em jogo e depois, mesmo falhando os greens, salvando muitos pars com o jogo curto. Sempre foi a minha principal força, a criatividade ao redor do green. Acontece muito a quem se está sempre a colocar em dificuldades (risos)... 

O campo estava muito comprido, havia vento e muita humidade, mas de alguma maneira cheguei ao 16º buraco com +7. Alguém me disse: “Com o campo assim, ainda entras no play-off...” Não acreditei. Mas no 18.º fiz birdie com um hole-out diabólico e entrei mesmo – no play-off gross, ainda por cima. Tive de telefonar para casa a dizer que não ia almoçar, porque tinha de jogar o play-off à tarde. Depois do almoço, ao subir ao tee, até me tremiam as pernas. Os outros finalistas eram todos campeões: o Paulo Barcelos, o Francisco Garcia, o Pedro Freitas e o Jorge Soares. 

Decidi jogar só para não me envergonhar: fazer pars e, se possível, acabar uma ou duas acima. Acabei ao par do campo, com cinco pars, e ainda fui a mais dois buracos de morte súbita com o Jorge Soares. Os outros atacaram e espetaram-se todos. Na morte súbita, devia ter perdido logo no primeiro, mas saquei um up-and-down milagroso. Perdi no segundo, e então custou-me, porque dei shot para birdie e acabei por ter muito azar no bounce.

 Durante o torneio O Melhor dos Melhores, no green do 18 / © D.R. 

O golfe na ilha Terceira é muito peculiar. Como é ele na tua perspectiva em relação ao resto do país? 

É o clube mais democrático do país, creio. Os melhores jogadores são quase todos bombeiros, carteiros, pedreiros, pintores de construção civil. Joga-se muito bem golfe na Terceira. Só na freguesia da Agualva, que tem 1500 habitantes, há 20 handicaps de dígito único. É um fenómeno único em Portugal, e seguramente incomum no mundo inteiro. 

Só me consegui haver com eles naquele dia glorioso. Nunca mais bati bem na bola depois disso. Mas, durante semanas, ninguém se lembrava de quem tinha ganho: apenas de quem tinha ficado em segundo. Foi o meu maior momento de glória no golfe até hoje. E acabei por perder à Sporting: derradeiramente, amargamente, com a sensação de que podia ter conseguido o impossível. Acho que, no fim, bateu tudo certo (risos). 

E nas duas semanas recentes em que estiveste no continente num tour de apresentação do livro encontraste tempo para jogar? 

Fui jogar apenas uma vez, com os meus amigos da Aroeira: os irmãos Barreira, o Maurício, o Sérgio Pereira... Tínhamos – e teremos sempre – um grupo fantástico. Gente que gosta mesmo de golfe, não do estatuto social que ele possa dar, e com quem ao mesmo tempo se pode falar de tudo. Gente culta. Tenho amigos que o são há mais de 25 anos. Amigos mesmo íntimos, de que sou padrinho, ou que são meus padrinhos. Mas, quando fui para os Açores, a primeira coisa de que tive saudades em Lisboa foi de pisar o verde com a malta da Aroeira. 

Ao fim de quatro anos na Terceira, e com dois livros publicado nesse período, vais continuar a viver na ilha? 

Acho que sim. Não temos prazo para voltar, pelo menos. E não ter prazo para voltar, muitas vezes, é a melhor maneira de ficar para sempre. Logo se vê. 

E a rubrica “A Vida no Campo” é para continuar? 

Enquanto o Diário de Notícias quiser, sim. Mas os jornais estão em mudanças de direcção e a indústria em dificuldades. Não posso ser eu a garantir que isso vá acontecer. 

Em termos literários há novos projectos na calha? 

Em 2017 vou publicar um pequeno ensaio sobre os Açores do século XXI no catálogo da Fundação Francisco Manuel dos Santos. O próximo romance está marcado para 2018. Já estou a escrevê-lo e tenho-o bastante planeado, mas temo que em 2017 volte a passar longos períodos sem jogar golfe.