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Aquilo que nos une e aquilo que nos separa
Crónica
12/09/2014 09:46 Joel Neto

O golfe não pode continuar a ser um mecanismo de distinção social

Tenho escrito em defesa da popularização do golfe, e as razões são as mais diversas. Para além da sua extraordinária exigência emocional, sem a qual em todo o caso não existiria aquela dimensão filosófica, trata-se de um desporto que se pode praticar até muito tarde na vida, mesmo a um nível bastante razoável, que proporciona um exercício físico equilibrado e, ademais, favorece não apenas o desenvolvimento dos princípios da verdade e da honra, cada vez mais difíceis de adquirir pela juventude, como a criação de amizades e camaradagens, cada vez menos acessíveis nas complexas vidas que hoje vivemos.

Tenho poucas dúvidas: tal como a modalidade teria a ganhar com mais praticantes, também os portugueses teriam a ganhar com maiores possibilidades de jogá-lo, o que depende ao mesmo tempo de melhores preços e de melhor  divulgação. Há quarenta anos que vivemos uma espécie de PREC ininterrupto, feito de ressentimentos e de desconfianças, e acabar com os complexos classistas que gravitam em torno do jogo seria um privilégio para todos, contribuindo além disso para uma das indústrias em que a economia nacional mais poderia destacar-se, e da qual apesar de tudo está longe de tirar o proveito adequado.

Mas todo esse raciocínio perde a sua acuidade enquanto o golfe continuar a ser, para os próprios golfistas, um mecanismo de distinção social. E a verdade é que aquilo a que continuo a assistir nos nossos clubes, dos mais tradicionais aos mais recentes, e incluindo aqueles com campos muito aquém daquilo a que se convencionou um championship, é à utilização da modalidade como um meio para nos destacarmos socialmente, quase sempre em relação aos que não o praticam e às vezes até em relação aos que o praticam.

No modo como nos comportamos em campo ou na club house, no modo como nos vestimos e equipamos e, sobretudo, no modo como nos comportamos com quem não se comporta e equipa como nós – há muitas vezes um cheiro a autolegitimação que seria comovente se não fosse deplorável.

Somos, já se sabe, uns mimados, e isso não nos está apenas no sangue: está-nos na pele. Convencemo-nos de que já pagamos o suficiente pela oportunidade de pisar o verde e queremos tudo o mais de graça. Vamos a um torneio por que pagamos cinquenta euros, incluindo green fee, buggy, almoço e prémios da tômbola, e no fim ainda fazemos um gesto amaneirado a reclamar que o almoço não valia nada. Às vezes nem sequer comparecemos a esse almoço, aliás: vamos almoçar a outro lado, com os amigos junto de quem queremos dar boa nota da nossa patine, porque no fundo não comemos daquela bodega – e, em qualquer caso, permanecendo ou zarpando, saímos impantes, de traje de luzes, como se pertencêssemos a algum tipo de casta superior.

Não pertencemos. Somos apenas quinze mil jogadores recreativos de nível razoavelmente medíocre, que têm a sorte de viver num país com quase uma centena de campos de altíssima qualidade, onde se pode pagar duzentos euros para fazer parte de um clube e, em boa parte dos casos, mil euros chegam para adquirir um passe anual com o qual se pode jogar trezentos e sessenta e três dias por ano, duas ou mesmo (no Verão) três vezes ao dia. São mais de setecentas rondas, a pouco mais de um euro cada. São mais de sete mil buracos, a pouco mais de dez cêntimos por buraco. E ainda podem jogar-se duas bolas de cada vez. Ou um balde inteiro, porque o campo está vazio.

Para jogar golfe, hoje em dia, não é preciso muito mais do que estar vivo. Nem é preciso ser de classe média: pode ser-se até pobre. No meu home club, o Clube de Golfe da Ilha Terceira, a maior parte dos praticantes já é, aliás, pobre. Se retirarmos da equação a tendência para pôr o pé em cima do pescoço da pessoa ao lado, pois, estaremos mais perto da plenitude. A sorte, essa, já é plena.

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Jornalista e escritor

 

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