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Haveremos sempre de ter o golfe
Crónica
22/10/2014 12:05 Joel Neto
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Há neste jogo uma condição que não encontrei em mais nenhum. Ele é um abismo reiterado

Das grandes frases de golfe, as minhas preferidas são quase sempre as de P.G. Wodehouse, e entre estas a que fala de um homem que desfruta “daquela paz perfeita, daquela paz para além de todo o entendimento que só atinge o seu esplendor quando um homem desiste de jogar golfe”.

Nunca o consegui. Desde que pela primeira vez pisei o verde, há agora mais de sete anos, informei-me a mim próprio umas trezentas vezes de que não tornaria a desperdiçar quatro horas de vida em busca da perfeição. Violei sempre a promessa: uma semana depois, se não no dia seguinte, lá estava de novo, perseguindo (e agora parafraseio Churchill, o melhor dos inimigos do jogo) o meu comprimido de quinino através da pastagem.

E, no entanto, de cada vez que percorro um fairway encontro novas provas da acuidade do aforismo de Wodehouse. Tenho sorte, creio: a deformação profissional tornou-me gatuno, vilão, e raramente há um suspiro, um olhar ou um silêncio de um companheiro que me passe despercebido. Ademais, tenho procurado a perfeição na companhia de todo o tipo de gente: homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres, jogadores de excelente nível, de nível mediano e até de nível nenhum.

Todos, até hoje, avalizaram Wodehouse. Já joguei com Retief Goosen, Peter Hanson, Matteo Manassero. Avalizaram Wodehouse. Uma vez, nos Açores, joguei um pro-am na mesma formação de um senhor do Porto – creio que era do Porto – que, quando conseguiu finalmente chegar ao fairway do primeiro buraco, já levava nove pancadas. Também ele avalizou Wodehouse. Diziam-no os seus olhos. Os olhos deles todos.

Há neste jogo uma condição que não encontrei em mais nenhum. Ele é tecnicamente superlativo, mas outros jogos são-no também. Ele é filosoficamente espesso, mas há outras modalidades que o são de igual modo. Ele é psicologicamente arrasador, a coisa mais stressante que alguma vez fiz na vida, mas talvez outros desportos sejam assim. Sobretudo, ele é um abismo reiterado, pancada atrás de pancada – e é isso que o torna redentor como mais nenhum que eu conheça.

Nunca encontrei um só golfista – e peço desde já desculpa se o leitor é precisamente a excepção de que a regra sempre se socorre para que a dêem por confirmada – que não fosse de algum modo um homem devastado. Um homem ou uma mulher: há sempre uma falta qualquer em quem pratica este jogo. Há sempre uma solidão, um vácuo, um sentimento de perda, uma incapacidade. Somos nós as viúvas, no fundo – não quem fica em casa. E só aquele abismo, aquele persistente contacto com o fim, com a sua perspectiva, nos lembra verdadeiramente de que estamos vivos. Às vezes setenta vezes numa tarde. Outras cento e vinte.

Há poesia neste jogo. As vertigens, dizia Kundera, não são o medo de cair: são o desejo de cair, do qual nos protegemos com pavor. O pavor é o coração do golfe, e é sobre esse pavor que eu espero escrever a partir daqui, ao ritmo de uma vez por semana.

Até pode acontecer que o assunto pareça apenas as onze amantes de Tiger Woods. Mas, entre o sexo e a morte, como nos ensinaram os góticos, a distância é nenhuma. E, da morte ao duplo bogey, também não vejo que lonjura vá.

Sim, eu gostava de poder deixar de jogar golfe, um dia. Mas não creio que tenha sido talhado para a paz perfeita – e, quanto a isso que chamam viver em pleno, nunca soube muito bem do que se tratasse.

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Jornalista e escritor

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