Passava o dia a sonhar com fades, draws e “américos”, fixado na hora do regressar ao campo
Recordo a emoção da bola a voar uns poucos de metros acima da relva. Limitara-me a fazer de macaquinho de imitação e a rodopiar o corpo, agarrado ao taco com a elegância tosca de um lenhador. Milagre ou sorte de principiante, o taco embateu no ponto exacto da bola capaz de a levar a descrever um voo rasante, aquilo que mais tarde vim a saber designar-se por “caroque”.
À socapa, tirara um ferro do saco e deixara-me ficar para trás. O meu padrasto ia distraído como sempre o via, a fazer contas de cabeça às pancadas e a ensaiar movimentos no ar com a mão. De mãos juntas a meio da pega, volteava o taco para trás das costas, apenas ocupado em cacetear as bolas como deviam ter feito os guardas da rainha Maria Stuart nos descampados de St. Andrews com as pedras de guta percha. No espaço de minutos as bolas e o vício estavam lançados.
Ao ver-me ao longe, desprovido do seu ferro 7, o meu padrasto desatou aos berros. Pus-me a correr como um coelho em sobressalto e cheguei ao pé dele a arfar, na esperança de me poupar a uma galheta por conta das cinco bolas listadas que trazia nos bolsos. Ele olhou para mim e disse com ar professoral de lorde inglês: “Esse é o ferro da sorte do Ballesteros!”.
Não sabia ainda quem era tal figura de terno cognome “Seve”, mas depressa nomes como Jack Nicklaus, o “Urso Dourado”, Tom Watson, Gary Player, Sam Snead, Tony Jacklyn, Sir Harry Cotton, Harry Vardon, Arnold Palmer, Bernard Langer e Nick Faldo tornaram-se tão íntimos como Os Cinco e Os Sete.
Na Quinta da Marinha pontuava António Dantas, uma velha glória do golfe por quem passavam os aspirantes a golfistas. Dantas ensinava sem técnicas elaboradas e guiava-se pelo instinto e a graciosidade aliadas a um instinto vencedor. Olhava-o a bater a bola e guardava a ideia de colocar as biqueiras dos pés apontadas para a esquerda e deixar o corpo seguir o movimento como o desabar de uma onda.
Apanhado pelo vício de dominar o voo da bola e tratar os tacos por tu, levava os dias, da aurora ao sol-pôr, largado nos fairways, greens, e em particular no mato. Levantava-me ainda de noite e descia a Av. de Sintra numa bicicleta Tip-Top. Era o primeiro a chegar ao campo de treinos onde o Gina areava os tacos e lavava as bolas. Às 7h30 já tinha 150 bolas aviadas, antes de fazer o caminho de volta até ao liceu de S.João do Estoril.
Passava o dia a sonhar com fades, draws e “américos”, fixado na hora do regressar ao campo, de onde saía noite cerrada e de mãos feitas num bolo. Um dia ganhei o campeonato do clube, e fui até Miramar na equipa do Dantas. Eu, o Miguel Franco de Sousa, que era como um irmão mais novo, e os irmãos Ignacio e Alejandro Echevarrieta, que jogavam pelas nossas quinas contra os espanhóis com o pendor atacante dos mercenários nos prados de Aljubarrota.
Calhou-me ir para o campo numa manhã de tornado. Preparara as tacadas em punch e sentia confiança para seguir até ao final e lutar pelo caneco. Ao chegar a um par 3 defendido por sebes e bunkers, o vento soprava de frente como um tufão, e só com um “drive” podia aspirar ao coração do green. Bati uma, duas, três, até chegar às sete tacadas com seis out-of-bounds e um cartão destroçado. Para me consolar, António Dantas deu-me a notícia de que o meu resultado era o segundo melhor do dia, pois ali todos borregavam.
Desolado, fiz o que muitas vezes fazia diante da fatalidade, e semeei os ares de impropérios como o capitão Haddock. Foi então que o Miguel Franco de Sousa sacou de um gravador a pilhas e pôs a tocar o nosso hino, o Sultan’s of Swing, dos Dire Straits, para me consolar da infinita tristeza de entregar um cartão de 114 pancadas com um handicap zero.
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*Escritor
**Esta crónica foi publicada inicialmente no Caderno GOLFE do jornal Público, dia 30 de Janeiro