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Shot Stories - Mano a mano
Crónica

De tudo na vida, não há como recordar os momentos de glória ou tragicómicos     

A memória, mesmo a elefantina, é frágil e dada a exageros, uma troca-tintas perita a deixar escapar os detalhes que acrescentam, mas tenho para mim que de tudo na vida, não há como recordar os momentos de glória ou tragicómicos, se formos dados à auto-ironia. Aquilo a que se chama de viver para contar. Isto aconteceu assim. 

Era Verão e disputava-se na Carregueira (Lisbons Sports Club) o Campeonato Nacional de Juniores. O ano seria 1988 ou 1989, não sei agora precisar, e a estrela do momento era o algarvio António Castelo a quem chamavam de O Exterminador Imparável, apresentado ao país como o pupilo sensação descoberto e adestrado por Tony Barnabé, o decano do golfe instalado no remanso de Vilamoura como um paxá nas arábias.

Embora franzino e adolescente, Castelo parecia um homem feito, como um futebolista educado nas escolas do clube, e fazia da bola quase tudo o que queria, fraquejando apenas se calhava aparecerem raparigas para o ver em acção.

Depois de duas voltas de stroke play consegui passar à fase de match-play e depressa a alegria deu lugar à apreensão por ter o Castelo como adversário. Sabia do seu único ponto fraco, e ainda pensei ligar a umas amigas para virem de passeio à Carregueira, e que viessem de pernas ao léu e saias rodadas. Acima de tudo estava o fair play e fiquei-me apenas pela lúbrica intenção.

Apareci no tee do 1 já condenado à partida a ser esmagado no 11. Não por temer o Exterminador, mas porque esse era o vaticínio das apostas de 100 paus que corriam. Ninguém dava um chavo por me ver apurado, excepto o Gina, o meu caddie que tinha vindo comigo de mota Zundapp com atrelado da Quinta da Marinha disposto a levar-me à vitória.

Castelo apareceu com um caddie veterano, como um profissional do tour, e um séquito de apoiantes que mais parecia uma legião de mouros, nenhum deles do sexo feminino. Pelo ar de poucos amigos vinha disposto a arrasar-me como a uma maçã do chão.

O jogo começou com um inesperado 1 up para mim, e lembro-me de pensar com agrado que no 11 já não ia ficar. Assim fomos, taco a taco, e alguém se lembrou de dizer a passar ao 14 que íamos 5 abaixo, um resultado surpreendente que fez toda a clubhouse vir em peso para os fairways ver o inesperado despique.

Chegámos ao 17 empatados, um par 4 estreito e comprido, de regueiras assassinas de cada lado. Bati o ferro 1 para o meio do fairway, um velho ferro da Titleist de pega em couro comprado numa feira da Ladra em Dublin, que era o meu taco favorito para as jogadas debaixo de pressão. Na segunda pancada joguei em último e o Miguel Rocha, um rapaz histriónico, lembrou-se de dar uma gargalhada no exacto momento em que atacava a bola. O resultado foi um shank aparatoso e a bola na regueira injogável. Castelo não falhava uma, e estava no meio do green, com putt para birdie. Caso dropasse estava arrumado, por isso não me restava alternativa a não ser jogar, e fosse o que Deus e Buda quisessem.

Tinha uma paixão por jogadas difíceis inspirada no jogo do espanhol Seve Ballesteros, mas quando vi a bola tapada por uma pedra e flanqueada por um muro, achei que nem o manitas de ouro conseguiria safar-se daquela alhada. Peguei no sandwedge e sem grandes tácticas pensei apenas em acertar na pedra no lugar da bola, achando que talvez a bola saísse em ricochete e se desse um milagre.

Nunca saberei como fiz aquilo, mas a bola saiu como se fosse tirada do bunker e foi aterrar para lá do buraco fazendo um backspin de um metro ou mais estacando ao lado da caneca para um gimmie. Castelo boquiabria-se como um sargo, ele e toda a comitiva que me via fadado a acabar ali as minhas horas de esperança.

Ainda podia passar-me a dianteira, mas não enfiou o birdie e fomos para o último buraco tal como estávamos. Voltei ao ferro 1 enquanto Castelo mantinha os seus drives quilométricos e a pose leonina. Joguei primeiro e pus a bola no green a um putt do sonho, com Castelo a 40 metros do buraco no rough.

A fibra de campeão de Castelo estava guardada para o fim que enfiou um chip de antologia, obrigando-me a meter um américo para continuar em jogo. Foi a primeira e última vez que soube da emoção do jogo ao seu mais alto nível, o jogo a quem os escoceses chamaram por alguma razão the greatest game ever played. O putt saiu-me de instinto e sem linhas tiradas à lupa e fez uma gravata que levou a um sonoro ah seguido de um grande aplauso que me fez sentir por instantes em St. Andrews ou Augusta. Castelo tirou o chapéu, percorreu o green com o caminhar altivo que era a sua imagem de marca, deu-me um abraço vigoroso e disse então com sotaque do barlavento. “Ainda hás de me dizer como é que fizeste aquilo”.

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Jornalista e escritor

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